Bruce McLaren - A
magia de Le Mans
Os anos 60 assistiram a entrada em força das
principais marcas americanas no panorama do automobilismo de competição mundial.
Depois da Cunningham, Chevrolet e Scarab terem, sem grande sucesso, procurado
marcar posição nalgumas das grandes competições, a Ford e a General Motors,
através da Chevrolet, irromperam em grande estilo nas principais provas
internacionais de resistência a partir de 1963.
A Ford, foi a marca que encarou de forma mais
séria essa participação, como parte de uma estratégia comercial global que não
mais abandonou e da qual ainda beneficia. A partir de 1967, o financiamento dos
motores Cosworth na categoria suprema do desporto automóvel, a Formula 1, acrescentou
à sua imagem corporativa de fiabilidade o selo da rapidez, elementos
indissociáveis da estratégia de conquista não só dos mercados mas
principalmente do coração dos amantes do automobilismo da Europa e de todo o
mundo.
Alguns binómios desportivos fizeram parte
dessa estratégia e ainda hoje são indissociáveis da sua história pioneira e
fascinante: Cobra e Carroll Shelby, os duelos Ford-Ferrari e Ford-Porsche, nos
anos 60, Jim Clark e a Lotus em Indianápolis, Cosworth e a Formula 1, um pouco
mais tarde. De certa maneira a história de sucesso da Ford construiu-se a
partir do confronto com os seus poderosos opositores. Não tivessem existido os Ferrari
e Porsche e não teria a Ford construído a sua fama e uma imagem tão forte.
Algo de que até hoje pouco se falou é a importância
da literatura automobilística como protagonista dessa estratégia. Concertadamente
ou não, enquanto a Ford lutava pela vitória nas 24 horas de Le Mans, surgia na
Europa um conjunto de publicações e resenhas desportivas que envolviam e
empolgavam os adeptos com as façanhas dos pilotos e marcas que utilizavam os
seus motores e, por todo o mundo, construíam a fama da marca.
Entre essas coleções e obras narrativas
destacavam-se na altura vários títulos publicados em língua francesa, pelas
Editions Gérard & Cº na Bélgica, a coleção Marabout Service. Eram vendidos
na livraria Aillaud e Lellos e em outras da Baixa Lisboeta.
Destaco pela relação óbvia com a marca, Des Cobra aux Ford du Mans de Carroll
Shelby, Ford et la course, de Lyle
kenyon Engel, Le Duel Ford Ferrari aux 24
Heures du Mans, de Anthony Pritchard, Jim
Clark por Jim Clark e Les routes de
la victoire coletânea de vários textos escritos por destacados desportistas. Qualquer destes livros conseguiu na
época, acrescentar um forte significado competitivo ao arriscado pioneirismo da
marca americana. Hoje em dia, 45 anos depois de serem escritos, são testemunhos
inestimáveis de uma estratégia de marketing agressiva mas eficaz e plena de
sucesso.
O artigo que se apresenta em seguida é a
tradução de um dos treze capítulos do livro Les
routes de la victoire, ou, na edição inglesa, The Ford book of competition motoring, de 1965. É um dos mais interessantes e talvez dos poucos escritos que nos
ficaram dessa figura marcante no desporto automóvel dos anos sessenta, que foi Bruce
McLaren. Escrito em vésperas da prova de 1965, representava a história incompleta
de um sucesso anunciado na mais importante prova automobilística do mundo, as
24 Horas de Le Mans, prova essa que Bruce iria vencer no ano seguinte. Relata
aqui aquela que foi a sua primeira experiência ao volante da coqueluche dos
carros de Sport dos anos 60, o incomparável Ford GT 40.
O capítulo, começava com uma nota de editor e
completava-se com o texto do piloto.
A Magia
de Le Mans
Nascido
na Nova Zelândia, Bruce McLaren chegou à Europa em 1958. Secundou Jack Brabham
no Campeonato do Mundo de 1960. Atualmente, piloto número um do team Cooper de
Formula 1, ocupa-se igualmente da construção de automóveis e dirige um gabinete
de estudos. É particularmente feliz ao volante de viaturas potentes tais como o
Ford GT que pilotou em 1964 e 1965.
Penso que ninguém aprecia realmente Le Mans,
mas sou talvez influenciado pelo facto de estas 24 horas clássicas terem sempre
terminado para mim (escrevo estas linhas antes da prova de 1965) por uma
pancada seca no vidro da caravana, às primeiras horas do domingo de manhã:
vinham-me avisar que o nosso carro tinha avariado.
O fantástico aparato da preparação desta
corrida contagia-nos nos últimos minutos, quando nos dirigimos calmamente para
o nosso círculo de partida procurando não parecer indiferentes perante a longa
fila de brilhantes carros de sport e grande turismo – os mais rápidos e
melhores do mundo. Atrás de nós, um mar de rostos. Muitos já não estarão lá na
manhãzinha do dia seguinte. Igualmente, muitos dos carros também não.
O enorme ponteiro do grande relógio marca 16
horas: a corrida começa. Subitamente, o
sprint em direção aos carros torna-se o mais importante. Tão importante como
chegar em primeiro no momento em que a bandeira baixar, vinte e quatro horas
mais tarde. Mas, ninguém pensa nisso neste momento. Toda a estratégia de
corrida, tão cuidadosamente preparada, é esquecida nestes poucos metros que
duram a corrida a pé. Mergulhamos no carro sem nos preocuparmos com arranhões
ou contusões, que nos teriam feito sofrer quando nos treinávamos para esta
partida.
Tudo acontece ao mesmo tempo. Desembraiar,
meter a primeira velocidade: o motor de arranque, o arranque do motor. À nossa
volta, os escapes rugem e eis-nos a arrancar no meio de um engarrafamento
incrível, enquanto os mais rápidos alcançam já a primeira curva à direita,
acotovelando-se para ficarem bem colocados depois da lomba, procurando ganhar
lugares na travagem para os esses.
Estas primeiras voltas ao circuito de Le
Mans, o piloto adora-as, o copiloto inveja-as e o diretor de corridas
detesta-as. Parece que todos os planos, cuidadosamente elaborados, foram
levados pelo vento quando os primeiros quatro ou cinco carros passam a um ritmo
infernal em frente aos stands, em luta pelo primeiro lugar. Este clima de
excitação morre ao fim de algumas voltas, quando as distâncias entre os líderes
aumentam e as posições dos que os seguem estabilizam, salvo para alguns
desafortunados que, tendo partido mal, lutam para ganhar terreno.
É a altura da prova que prefiro. Os carros
estão perfeitos e os pilotos estão frescos para a corrida. Tal como era esperado,
o sol brilha ao entardecer, a estrada está seca (é geralmente o caso) e a
condução é agradável.
Mas a obscuridade sucede ao crepúsculo
enganador e, repentinamente, o campo de visão reduz-se ao alcance dos faróis. Não
existem até ao momento faróis capazes de permitirem em segurança a velocidade
de 320 quilómetros
por hora numa estrada cheia de carros. Mas, de certa maneira, a obscuridade
ajuda a combater as perigosas diferenças de velocidade no circuito de La Sarthe , onde os Ford e os
Ferrari desaguam velozmente na longa reta de Mulsanne a mais de 320 à hora,
passando como clarões pelas viaturas mais lentas que lutam pelas categorias e
dificilmente ultrapassam os 160 à hora. Rolar a 160 km/h em estradas
abertas é uma façanha para um condutor médio mas, em Le Mans , isso representa a
diferença entre os mais rápidos e os mais lentos.
Muitas vezes chove e o párabrisas, salpicado
de óleo, borracha e poeira desde as primeiras horas, fica encharcado e opaco
enquanto os limpavidros e lavavidros se esforçam por funcionar, apesar da
velocidade. Não é para admirar que as bandeiras amarelas apareçam com
frequência.
Nos stands, as equipas trabalham seguindo
planos estabelecidos previamente. Duas horas depois da partida, as viaturas
param uma depois da outra para reabastecimentos. Um relatório rápido do piloto,
depois ei-lo que arranca para um novo período que acabará com a mudança de
piloto. Talvez um novo jogo de pneus, alguma descontração e uma boa refeição na
roulote, atrás dos stands. Os cronometristas inclinam-se sobre os aparelhos e
os tempos por volta estabilizam à medida que o novo piloto se apercebe dos
troços mais escorregadios, verifica o estado dos travões (estariam tão mal como
dizia o colega?) e a velocidade à qual pode rodar.
Os tempos começam a querer dizer qualquer
coisa, as previsões começam a tomar forma.
Até à meia noite, Le Mans é uma prova
excitante. Depois da meia noite, a tensão começa a esbater-se. O piloto
temporariamente sem carro, procura o descanso enquanto o piloto que está ao
volante gostaria de fazer o mesmo. Mas esta sensação dissipa-se pelas 3 da
manhã. Chega então um “segundo fôlego”. Mais uma hora ao volante e sentimo-nos
capazes de guiar até ao fim da prova. Mas quando chega a mudança de turno, uma
boa cama é a única coisa em que se pensa.
Faz muito mais frio em Le Mans do que se imagina.
A equipa do stand reúne-se em redor das chávenas de café e esfrega as mãos
apesar dos agasalhos. O esgotamento instala-se; os olhos cansados permitem
distinguir os que dormiram daqueles que ainda não o fizeram. O número de
concorrentes rareou durante a noite. Os problemas mecânicos fizeram vitimas com
panes de motor e transmissão, devidas às velocidades constantes e prolongadas. As
carroçarias amolgadas são testemunho silencioso de momentos de perigo e erros
humanos. No stand Ford, John Wyer não se preocupa com os andamentos de cada um.
É quase impossível seguir a progressão de cinquenta pilotos nas primeiras
horas. Wyer considera que, se os seus carros não estiverem no grupo da frente à
hora a que os franceses se preparam para o almoço dominical, mais vale fazer as
malas e ir-se embora.
A última hora de corrida assemelha-se a uma
comédia grotesca. As viaturas que durante horas rodaram a uma média de 210 Km/h são “amparadas”
nas boxes e deslizam depois para a primeira curva à direita sem aceleração.
Pouco tempo antes, passavam nos stands a grande velocidade, rugindo em plena
aceleração. Mas agora, trata-se de atingir incólume a linha de chegada e de o
fazer na liderança.
Forçar o andamento, nas últimas horas de
corrida provocou muitas vezes o desastre numa altura em que a vitória estava ao
alcance. Todos os que se aguentaram até ao momento, estão conscientes das
consequências e a média dos carros da frente cai provavelmente para os 150 km/h – quando, bem
entendido, estes carros têm a vantagem habitual de cinco ou seis voltas.
Le Mans, na época dos “Bentley Boys”, nos
anos vinte, deve ter sido um alegre piquenique no campo. Atualmente, é um
exercício automobilístico muito caro e pleno de desafios. Condicionado por
estatutos e regulamentos aparentemente criados para tornar a vida tão difícil
quanto possível aos concorrentes, aquele que pretende obter um resultado nas 24
Horas deve munir-se de muita paciência e dinheiro. Ferrari vai lá para ganhar,
e ganha geralmente. Não importa quem, aquele que procure os louros deve bater
os vermelhos carros italianos. Quer isto dizer que o amador tem verdadeiramente
poucas hipóteses se as equipas de fábrica participam na prova.
Nos últimos anos, a Ferrari fez o que quis,
pelo menos até 1964, momento em que a aparição dos Ford GT azuis e brancos
tornaram a corrida de Le Mans, virtualmente a mais interessante do calendário.
Estes recém chegados, baseados em Inglaterra
e financiados a partir dos Estados Unidos, poderiam eles bater a potência reconhecida
dos Ferrari? Os tempos dos treinos pareciam dizer que não, mas, quando Richie
Ginther tomou o comando da corrida com o Ford GT, saltando três Ferrari em
Mulsanne, as ações da Ford subiram em flecha.
Infelizmente, este sucesso durou pouco.
Caixas de velocidades partidas afastaram da corrida duas das equipas, enquanto o
terceiro carro, pegando fogo, ficou completamente destruído. Ferrari venceu de
novo com os seus três carros que cruzaram a meta pela ordem 1, 2, 3, a uma velocidade triunfante
de 195 Km/h .
Contudo, na sua sombra e à cabeça do agitado grupo dos GT, o Ford Cobra, magnificamente
pilotado por Dan Gurney e Bob Bondurant. A Ford, podia ter falhado o alvo mas a
vitória do Cobra GT tocava a Ferrari no seu ponto sensível. Dizia-se que os
Ferrari podiam ser batidos e que os Ford afinal tinham alguma hipótese.
A multidão enorme que se dirige para o
circuito de Le Mans, nos limites de uma pacata cidade de província, atraída
mais pelo nome do que pelo prazer de ficar acordado durante 24 horas,
acumula-se junto às barreiras do circuito para ver a batalha que se desencadeia
às primeiras horas. Mas o fascínio diminui rapidamente, salvo para os
fanáticos. Os espetadores franceses, que demonstram ser menos ferrenhos do que
se pensava, deixam o circuito e vagueiam pela feira que os cerca parando numa
ou outra barraca. Os bares e quiosques de hotdogs estão repletos. No interior
do circuito, encontram-se boutiques que vendem artigos exclusivos a preços
exorbitantes; exposições de automóveis que atraem compradores e passeantes. E
entretanto, no circuito, a alguns metros de distância, os bólides passam barulhentos
a 240 à hora.
Quando o orvalho da manhã desaparece – e
existe geralmente orvalho nesta região – os parques de estacionamento e a
cidade de barracas regressam à vida. Campistas e condutores que dormem nos seus
carros espreguiçam o corpo dorido questionando-se se teria sido boa ideia
passar a noite no circuito.
Aqui e ali, algumas pessoas olham para algum
carro parado, cheio de óleo e abandonado.
Le Mans adquiriu ao longo dos anos uma sólida
reputação, ao ponto de, quando se fala de corridas de automóveis para carros de
sport, é imediatamente em Le
Mans que se pensa. As primeiras corridas de 24 horas eram um
divertimento para as mecânicas de série, as quais podiam ser conduzidas do
salão de exposições para o circuito (ou quase), inteiros e munidos das suas
capotas que eram retiradas para as voltas iniciais.
Naquele tempo – a primeira corrida de Le Mans
data de 1923 – um construtor podia falar de vitória se o carro terminasse a
corrida. Fazer rodar um carro durante 24 horas a não importa qual velocidade
constituía já uma façanha assinalável. Era, nesse tempo, uma verdadeira corrida
de resistência. Ainda o é, mas os carros de competição devem exibir atualmente
as performances dum carro de Grande Prémio sendo tão resistentes como um carro
de série.
As vitórias à categoria valem bastante, tanto
em dinheiro como em fama, mas o público só se apercebe de que os prémios mais
chorudos vão para o corredor de fundo mais rápido. Os automóveis que desistem
não recebem nem prémios nem publicidade e os construtores põem uma parte da sua
reputação em jogo quando realizam uma prova em Le Mans – a grande passerelle
dos carros de sport – tal como uma vitória no Ralli de Monte Carlo significa um
impulso notável nas vendas para a marca vitoriosa.
Vejamos as coisas objetivamente: Le Mans é um
nome mágico no calendário de corridas, agrade-nos ou não correr neste circuito.
Eu, não espero esta corrida com um prazer particular, mas todos os anos ela aí
está, como o orçamento de Estado, e nada podemos contra isso. O labirinto de
regulamentos e das artimanhas durante as verificações aborrecem-me. As discussões
apaixonadas, quando numa paragem em pânico no stand não se encontra o
“canalizador” ( comissário que sela e abre os tanques de gasolina e óleo) não
se parecem com nada. E, detesto dormir numa caravana, especialmente com a
angústia de ser acordado por uma palmada no vidro que me anuncia que o nosso
carro acabou de desistir.
Mas, a não ser para mim, isso é Le Mans.
Não é certamente a única corrida de endurance
importante. As Mil Milhas, corrida de 1600 quilómetros
através da Itália, já não existem. Na Sicília, o Targa Florio mantém as
corridas de automóveis nas montanhas – fantasia dos tempos heróicos. A corrida
dos Mil Quilómetros de Nurburgring constitui um teste severo á resistência
tanto do carro como dos homens, enquanto que as corridas da mesma duração nos
circuitos de Monthléry (França) e Monza (Itália) são mais rápidas mas um pouco
mais fáceis quanto a pilotagem.
Daytona e Sebring são os dois locais mais
conhecidos da América para as corridas de resistência. As curvas inclinadas de
Daytona permitem velocidades elevadas por volta e panes de motor enquanto a
corrida no campo de aviação de Sebring, na Florida, é feita de curvas secas e
linhas retas que testam ao máximo transmissões e travões.
Estas corridas muito longas, para carros de
sport, servem mais para o aperfeiçoamento dos carros de série do que outras
fórmulas de desporto automóvel e isto por causa dos detalhes mecânicos: travões
de disco que travam e continuam a travar, limpa vidros que funcionam a
velocidades elevadas, pneus que duram mais tempo apesar do uso severo nos
circuitos de estrada, lubrificantes que mantêm em funcionamento a mecânica
duramente solicitada em condições climáticas adversas.
Para mim, pilotar carros de sport, durante
horas a fio, nunca substituirá a sensibilidade dum monolugar de fórmula 1, mas
pode-se conseguir bastante satisfação do facto de pertencer a uma equipa que
corre com os vencedores nestas corridas de resistência.
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