Voltar a Le Mans


Voltar a Le Mans

Cheguei a Le Mans numa segunda feira soalheira e alegre de Agosto por volta da hora de almoço. Não tencionava parar mais do que algumas horas. O destino era Tours e não queria transformar os meus dias de férias em França, numa espécie de peregrinação mística a templos pagãos do desporto. Embora Le Mans merecesse isso, achei que a minha mulher não. Depois de me aturar as saídas de casa ao domingo de manhã, as tardes e noites agarrado ao ecrã a adorar estonteantes e berrantes bólides de muitos cavalos, obrigá-la a passar mais do que umas horas a olhar para o asfalto cinzento das estradas nacionais poderia revelar-lhe a verdade assustadora de uma mente de criança mal desenvolvida.
O circuito não é assinalado por qualquer das milhentas placas e tabuletas e não encontrámos na cidade rasto de indicações explicitas para o complexo desportivo. Admirei-me, dada a inclinação forte que os franceses têm para os pormenores. Mas neste caso, não havia mesmo e por isso deixo uma pequena ajuda aos que como eu demandam as paragens de La Sarthe, fascinados pela lenda.

Para procurar o circuito, que se transfigura ao longo do ano em avenidas, estradas e arruamentos nos arredores da cidade, a melhor forma de indagar por tão sagrado território é perguntar a qualquer pessoa onde é le circuit routier des vingt quatre heures. Todos respondem. Velhos, novos ou de meia idade. Se abordar o taxista no semáforo, o condutor do furgão ou o simples passeante de lambreta e lhes colocar a questão será recebido como se lhes tivesse entregue um maço de notas sem pedir nada em troca. Fazer a pergunta, é o melhor cartão de apresentação para qualquer estranho que se preza, em Le Mans.

Explico porquê. Depois de almoçar umas sandes com sardinha de conserva regadas com uma artificiosa Coca Cola, à sombra de um chapéu de árvores na praça da catedral, que é também mercado matinal, encaminhei-me para um simpático bistrot próximo da estátua dos irmãos Wright. À porta, numa pequena esplanada, alguns casais e gente de meia idade com ar sofisticado, gozavam a bela tarde.
Entrei e pedi um café aproveitando então para fazer a tal pergunta sacramental: como se vai para o circuit routierO prestável barman com o avental de rigor, trouxe-me imediatamente até à porta e apontou-me a avenida por onde teria que seguir. O meu fraco reportório de língua francesa pregou-me, todavia, a partida que se imagina. Ou porque a explicação foi disparada boca fora com o atropelo silábico de quem quer dizer tudo, talvez por culpa do meu hemisfério cerebral esquerdo pouco habituado a realizar várias operações ao mesmo tempo, ou anquilosado pelos cinquenta e tal anos que já não controlam sequências longas de informação, a verdade é que este menino ao pegar no Renault e armado em cavaleiro do asfalto acabou por enfiar a direito por uma outra e não a correcta avenida que me levaria ao santuário.
Andei perdido por veredas estreitas e pacatos bairros burgueses das vizinhanças da cidade, aparentemente azamboado pela profusão comunicativa do prestável dono do bar. Depois de muitas voltas e arquiestradas ladeadas de matas no meio de quintinhas e moradias, inconformado mas raivoso, como um vira lata que fareja ossos, cheguei agastado a uma bomba de gasolina e parei. A minha mulher protestou dizendo, o que é que tu achas que ele sabe? Ele sabe lá...Vais é perder tempo.
Não sei porquê, tanta oposição do banco da direita fez-me arremeter de imediato para a cabine do gasolineiro, sem esperar mais. Acreditando cegamente que naquela cidade e arredores quem não sabe onde é o circuito das 24 horas não pode ser bom cidadão, aproximei-me do rapazote bem disposto e perguntei-lhe com aquele ar de quem o considera cúmplice de um segredo, sabe dizer-me como posso chegar ao circuit routier des 24 Heures?
Sorridente e certamente feliz por mais um viajante que procura a grande atracção do lugar, o rapaz respondeu-me, talvez gozando para si mesmo e pensando, lá vem mais um à procura do cartaz da cidade ou do nada simplesmente:
La !! C' est la, la rotonde!!! e apontou uma rotunda.

Pasmado, olhei. Era uma rotunda. Uma enorme e isomórfica rotunda no meio da estrada, ou antes, das quatro estradas.
Finalmente, ali estava eu na curva de Mulsanne olhando de frente para a recta, a lendária e mortal recta no meio das árvores!

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